Brasil: um passo à frente para os direitos dos povos indígenas
Em uma vitória histórica para os povos indígenas do Brasil, o Supremo Tribunal Federal considerou inconstitucional o argumento que rejeitava as reivindicações das comunidades indígenas sobre terras que não ocupavam fisicamente em 1988. Dado o papel das comunidades indígenas na preservação da floresta tropical, essa também foi uma boa notícia para o clima e para o compromisso do governo de colocar o Brasil de volta no caminho certo para cumprir suas metas climáticas. Mas os políticos pró-agronegócio reagiram com uma lei para defender seus interesses que acaba de ser parcialmente vetada. O presidente do Brasil deve estar ao lado do movimento indígena e apoiar a ação climática contínua.
O Supremo Tribunal Federal do Brasil proferiu uma decisão há muito esperada, defendendo as reivindicações dos povos indígenas brasileiros sobre suas terras tradicionais. Isso foi feito rejeitando o chamado princípio do “Marco Temporal”, que só permitia a demarcação e a titulação de terras fisicamente ocupadas pelos grupos indígenas que as reivindicavam até 5 de outubro de 1988, quando a atual constituição foi adotada. Isso excluiu as inúmeras comunidades indígenas que haviam sido violentamente expulsas de suas terras ancestrais antes disso, inclusive durante a longa ditadura militar entre 1964 e 1985.
O caso foi apresentado em relação a uma disputa de terras no estado de Santa Catarina, mas a decisão se aplica a centenas de situações semelhantes em todo o Brasil.
Essa também foi uma boa notícia para o clima. O Brasil abriga 60% da floresta amazônica, um importante estabilizador climático devido à enorme quantidade de carbono que armazena e à água que libera na atmosfera. A maioria dos cerca de 800 territórios indígenas do Brasil – mais de 300 dos quais ainda não foram oficialmente demarcados – está na região amazônica. E não há melhores guardiões da floresta tropical do que os povos indígenas: quando eles evitam o desmatamento, protegem seus meios de subsistência e modos de vida. As áreas mais bem preservadas da Amazônia são aquelas legalmente reconhecidas e protegidas como terras indígenas.
No entanto, houve um imprevisto: os políticos apoiados pelo poderoso lobby do agronegócio aprovaram uma legislação para reconhecer o Marco Temporal, ignorando descaradamente a decisão judicial.
Um cabo de guerra
A decisão positiva da Suprema Corte não era certa de forma alguma e só veio depois de uma longa luta. Centenas de mobilizações indígenas ao longo de vários anos pediram a rejeição do Marco Temporal.
A decisão veio em resposta a um recurso extraordinário da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) contra uma tentativa apoiada pelo agronegócio de negar as reivindicações do povo indígena Xokleng de Santa Catarina.
Os poderosos interesses do agronegócio apresentaram o Marco Temporal como a maneira adequada de regulamentar o artigo 231 da Constituição de forma a proporcionar a segurança jurídica de que os produtores rurais precisam para continuar operando. O artigo 231 reconhece aos povos indígenas “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”.
Grupos de direitos indígenas denunciaram o Marco Temporal como uma clara tentativa de tornar legal o roubo de terras indígenas. Mecanismos regionais e internacionais de direitos humanos ficaram do lado deles: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o Relator Especial da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre os direitos dos povos indígenas alertaram que a estrutura contradizia os padrões universais e interamericanos de direitos humanos.
Em sua decisão de 21 de setembro, nove dos 11 membros do Supremo Tribunal Federal consideraram o Marco Temporal inconstitucional. Os dois juízes que apoiaram a decisão, Kassio Nunes Marques e André Mendonça, foram nomeados pelo ex-presidente de extrema direita Jair Bolsonaro, e Mendonça também foi Ministro da Justiça de Bolsonaro. Com um histórico de decisões favoráveis ao agronegócio, eles também foram os dois únicos juízes do Supremo Tribunal Federal que se recusaram a considerar o ataque de 8 de janeiro de 2023 à sede do governo federal por apoiadores de Bolsonaro como uma tentativa de golpe.
Reversão de quatro anos de regressão
Em seus quatro anos de mandato, Bolsonaro desmantelou as proteções ambientais e paralisou as principais agências ambientais, cortando seus recursos financeiros e de pessoal. Ele negou a realidade das mudanças climáticas e difamou publicamente a sociedade civil, criminalizou ativistas e desacreditou a mídia. Seu governo permitiu que o desmatamento prosseguisse em um ritmo espantoso e encorajou as empresas a se apoderarem de terras, limpá-las para a agricultura, incendiando a floresta, e a realizar extração ilegal de madeira e mineração. Um estudo descobriu que, se o desmatamento continuasse no ritmo dos anos Bolsonaro, o Brasil ultrapassaria sua meta de emissões de carbono para 2030 em 137%.
Sob Bolsonaro, as comunidades indígenas e os ativistas, já em dificuldades, tornaram-se ainda mais vulneráveis a ataques. Ao incentivar a pilhagem ambiental, inclusive em terras protegidas e indígenas, o governo permitiu a violência contra defensores dos direitos ambientais e dos povos indígenas. Um exemplo flagrante foi o assassinato, em junho de 2022, do especialista indígena brasileiro Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, que foram emboscados e mortos durante uma viagem de barco no Vale do Javari, a segunda maior área indígena do Brasil.
Assim que foi empossado, em 1º de janeiro de 2023, o governo liderado pelo Presidente Lula da Silva procurou reestruturar as instituições de controle e monitoramento de recursos que combatem as atividades ilegais ligadas à degradação ambiental, preservam os direitos dos povos indígenas e aprimoram seu papel na conservação ambiental. Foi criado um novo ministério para assuntos dos povos indígenas e a líder indígena Sônia Guajajara foi nomeada para dirigi-lo. Marina Silva, líder do partido ambientalista Rede Sustentabilidade, tornou-se Ministra do Meio Ambiente. E, pela primeira vez desde sua criação em 1967, a FUNAI é chefiada por uma indígena, Joenia Wapichana.
O novo governo restaurou o Plano de Ação para a Prevenção e Controle do Desmatamento na Amazônia que Bolsonaro havia desmantelado e criou uma Comissão Interministerial Permanente para a Prevenção e Controle do Desmatamento e das Queimadas.
O recém-nomeado Diretor da Polícia Federal para a Amazônia e o Meio Ambiente lançou uma campanha para livrar as terras indígenas protegidas de garimpeiros ilegais e, em julho, foi anunciado que cerca de 90% dos 20.000 garimpeiros que operavam no território Yanomami, a maior terra indígena protegida do Brasil, haviam sido expulsos. De acordo com fontes policiais, houve 19 alertas de desmatamento relacionados a garimpos em abril de 2023, em comparação com 444 em abril de 2022.
Enquanto a Suprema Corte realizava suas audiências e deliberações, a mudança política tomou conta. Bolsonaro, no poder de 2019 a 2022, havia prometido que “nem mais um centímetro de terra” seria dado aos povos indígenas. O processo de demarcação de terras permaneceu paralisado por anos, embora a documentação estivesse pronta para que dezenas de comunidades indígenas recebessem títulos de terra e proteção contra incursões predatórias de mineradores, madeireiros e fazendeiros.
Mas isso mudou. Em abril de 2023, o Presidente Lula assinou decretos reconhecendo seis novos territórios indígenas. Os povos indígenas foram autorizados a ocupar a terra e receberam acesso exclusivo a seus recursos e autoridade para expulsar invasores.
Não há melhores guardiões da floresta tropical do que os povos indígenas: quando eles evitam o desmatamento, protegem seus meios de subsistência e modos de vida.
Ao anunciar as seis reservas, Lula disse que seu governo demarcaria o maior número possível de terras indígenas – para concretizar os direitos indígenas e ajudar a cumprir os compromissos climáticos do Brasil. Ele prometeu aprovar todos os casos pendentes antes do final de seu mandato em 2026, uma promessa que anda de mãos dadas com o compromisso de alcançar o desmatamento zero até 2030. O reconhecimento de duas reservas adicionais em setembro veio junto com a notícia de que o desmatamento na Amazônia brasileira havia caído 66% em agosto em comparação com o mesmo mês de 2022.
O agronegócio resiste
Mas o lobby do agronegócio não aceitou seu destino pacificamente. A poderosa bancada ruralista do Congresso apresentou um projeto de lei para reconhecer o princípio do Marco Temporal, que foi rapidamente aprovado pela Câmara dos Deputados em 30 de maio. A votação foi acompanhada de protestos, com grupos indígenas bloqueando uma das principais rodovias do país. Eles enfrentaram a polícia com seus arcos e flechas cerimoniais e foram dispersados com canhões de água e gás lacrimogêneo.
Logo depois, o Senado fez alterações radicais no projeto de lei sobre os Ministérios enviado por Lula, diluindo os poderes dos Ministérios dos Povos Indígenas e do Meio Ambiente. A sociedade civil foi às ruas e às mídias sociais para apoiar as políticas ambientais do governo.
O projeto de lei do Marco Temporal continuou sua tramitação no Congresso mesmo após a decisão da Suprema Corte. Em 27 de setembro, com 43 votos a favor e 21 contra, o Senado o aprovou em caráter de “urgência”, rejeitando a essência da decisão da Suprema Corte e alegando que, ao emiti-la, o tribunal havia “usurpado” poderes legislativos.
A avaliação da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) é que, além de manter o Marco Temporal, o projeto de lei busca flexibilizar a política de não contato com os povos indígenas isolados voluntariamente e abrir as portas para a produção de commodities e construção de infraestrutura em terras indígenas, entre outras graves violações dos direitos indígenas. Por esses motivos, os grupos indígenas o chamam de “Projeto de Lei do Genocídio Indígena”.
A luta continua
Com a aproximação do prazo final de 20 de outubro para que o presidente Lula assinasse ou vetasse o projeto de lei, uma campanha liderada pela deputada indígena Célia Xakriabá coletou quase um milhão de assinaturas apoiando seu pedido de veto total. Juntamente com outros grupos da sociedade civil, a APIB enviou um apelo urgente à ONU solicitando apoio para pressionar Lula a vetar o projeto de lei.
Já somos quase um milhão em luta contra o Marco Temporal e temos assinaturas de 190 países. O mundo todo é contra o Marco Temporal. Queremos o veto do presidente @LulaOficial ao PL 2903! Assine também é faça parte da luta dos povos indígenas. https://t.co/KMy5P6JKL9 pic.twitter.com/mQBHcN7q2v
— Célia Xakriabá (@celiaxakriaba) October 11, 2023
Em 19 de outubro, o Ministério Público Federal afirmou que Lula deveria vetar o projeto de lei devido a sua inconstitucionalidade. No mesmo dia, no entanto, fontes do alto escalão do governo afirmaram que não haveria um veto total, mas um veto parcial “muito grande”. E, de fato, no dia seguinte foi anunciado que Lula havia vetado parcialmente o projeto de lei. De acordo com um porta-voz do governo, todas as cláusulas que constituíam ataques aos direitos indígenas e contrariavam a Constituição foram vetadas e as que permaneceram serviriam para melhorar o processo de demarcação de terras, tornando-o mais transparente.
Mesmo que a parte do projeto de lei que não foi vetada não prejudique a decisão da Suprema Corte, a questão está longe de ser resolvida. O veto atual precisa ser analisado em uma sessão do Congresso em uma data ainda a ser determinada. O poderoso lobby do agronegócio não recuará facilmente. Conforme relatado pela APIB, muitos políticos possuem terras que se sobrepõem a territórios indígenas e muitos outros tiveram suas campanhas financiadas por fazendeiros que ocupam terras indígenas.
Embora não se possa descartar outras medidas da ala de Direita do Congresso, a decisão da Suprema Corte também tem alguns problemas. O mais flagrante diz respeito ao reconhecimento de que deve haver uma “indenização justa” para os não-indígenas que ocupam terras indígenas que adquiriram “de boa fé” antes de o Estado considerá-las território indígena. Os grupos indígenas alegam que, embora possa haver um número muito pequeno de casos desse tipo, em um contexto de violência crescente contra as comunidades indígenas, a proposta de compensação recompensaria e incentivaria ainda mais as invasões ilegais.
Porém, para além das disputas políticas, estão ocorrendo mudanças mais profundas que apontam para um movimento que está ficando cada vez mais forte e bem equipado para defender os direitos dos povos indígenas.
O censo de 2022, cujos resultados foram divulgados em agosto de 2023, mostrou um aumento de 90%, de 896.917 para 1,69 milhão, no número de brasileiros que se identificam como indígenas em comparação com o censo de 12 anos antes. Não houve um boom demográfico por trás desses números – apenas um longo trabalho do movimento indígena para aumentar a visibilidade e o respeito pelas identidades indígenas. Pessoas que por muito tempo ignoraram e negaram sua herança para se protegerem do racismo agora estão recuperando suas identidades indígenas, às vezes até se identificando como parte de grupos étnicos oficialmente considerados extintos. Nem mesmo a violenta postura antiindígena do governo Bolsonaro poderia reverter esse processo em andamento.
Atualmente, o movimento indígena brasileiro está mais forte do que nunca. O presidente Lula deve sua eleição ao fato de ter se posicionado como uma alternativa ao seu antecessor que negava os direitos e o clima. Ele agora tem a oportunidade de reafirmar seu compromisso de respeitar os direitos humanos dos povos indígenas e, ao mesmo tempo, enfrentar a crise climática.
NOSSOS CHAMADOS À AÇÃO
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O governo brasileiro deve manter o espírito da decisão do Supremo Tribunal Federal contra o princípio do Marco Temporal e continuar o processo de demarcação e titulação das terras indígenas.
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Os parceiros internacionais do Brasil devem instar e apoiar o Estado a cumprir seu compromisso de acabar com o desmatamento até 2030, inclusive protegendo os territórios indígenas.
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A sociedade civil brasileira deve permanecer vigilante e manter redes para defender e resistir às políticas que negam os direitos indígenas e a ação climática.
Foto da capa por Evaristo Sa/AFP via Getty Images